A cabeleireira Maria das Graças de Jesus, moradora da zona leste da capital paulista, enfrentou, em menos de quatro meses, três enchentes. Depois de perder praticamente tudo no último evento, em fevereiro de 2010, ela resolveu procurar a Defensoria Pública e ingressar na Justiça. Recentemente, obteve em sentença o direito de receber indenização por danos materiais e morais no valor de R$ 162 mil.
Moradores de várias cidades brasileiras, vítimas de enchentes, têm seguido o mesmo caminho e, quando comprovam a culpa do poder público, conseguem pelo menos ser indenizados pelos prejuízos sofridos. No município de São Paulo, onde o problema é recorrente, o número de ações tem crescido, segundo a Defensoria Pública do Estado. Os juízes, além de exigirem indenizações, têm determinado a realização de obras para conter o avanço das águas.
A decisão que favoreceu a cabeleireira foi proferida pelo juiz Luis Manuel Fonseca Pires, da 3ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo. O magistrado considerou que o município foi omisso por não ter planejado a ocupação do solo, como determina o artigo nº 30 da Constituição Federal. A paulistana mora em uma área próxima a um córrego, que transbordou três vezes e atingiu sua casa, derrubando uma das paredes.
Para o juiz, a prefeitura deveria ainda ter prestado serviços de saneamento básico, limpeza urbana e manejo das águas pluviais. "A omissão do Poder Público diante dos sucessivos eventos imediatamente o vincula ao evento danoso, pois concretamente o seu deliberado silêncio não evitou os sequenciais alagamentos, e todo o prejuízo, não só o material, mas ainda o moral ao ver a autora a sua casa três vezes tomada pelas águas e seus bens constantemente levados pela chuva", diz o magistrado.
Na ação, a prefeitura alegou que as chuvas são imprevisíveis e que os bens da moradora poderiam ser lavados e, assim, recuperados. Além disso, argumentou que os danos morais não poderiam ser pagos a alguém que mora em uma área de risco. "Às vezes a culpa é da própria pessoa, que mora em local irregular ou deixa seus bens expostos", afirma o procurador-geral do município de São Paulo, Celso Augusto Coccaro Filho.
Três moradores de São Mateus, na zona leste de São Paulo, também decidiram ir à Justiça depois de terem suas casas interditadas após um período de enchentes. As habitações apresentaram rachaduras e infiltrações. O pedido foi indeferido na 14ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo. Na decisão, o juiz Fernão Borba Franco entendeu que o município não deveria ser responsabilizado pelo problema. "A autora construiu ao lado de córrego, cujas margens naturalmente tendem a apresentar alguma variação", diz o magistrado na decisão, que foi revertida em segunda instância.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou o pagamento de danos morais e materiais e a construção de um muro de contenção para garantir que a água do córrego não volte a invadir as casas. De acordo com a defensora Renata Tibyriçá, que atuou nos dois casos, o Judiciário começa a reconhecer a culpa dos municípios por enchentes que poderiam ter sido evitadas. "Mas ainda temos alguns juízes que entendem que as enchentes são realmente imprevisíveis e que as prefeituras não teriam como impedir o problema", afirma.
Em São Luíz do Paraitinga, no Estado de São Paulo, moradores também decidiram procurar a Defensoria Pública depois de amargarem prejuízos com a elevação do Rio Paraitinga, que corta a cidade. Em ação civil pública, 500 famílias pedem o pagamento de R$ 80 mil por danos materiais e 100 salários mínimos por danos morais.
O defensor público Wagner Giron de La Torre alega no processo que o poder público incentivou a ocupação de regiões próximas às margens do rio e em encostas. "Havia cobrança de IPTU e pavimentação nas áreas. Candidatos patrocinaram gratuitamente ações de usucapião", afirma La Torre. Em liminar, a Justiça determinou, por ora, que o município faça obras no rio para evitar novas enchentes.
No Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça condenou o governo estadual a pagar R$ 7 mil a uma moradora de Porto Alegre cuja casa, que ficava próxima ao Arroio Feijó, foi inundada por enchentes. De acordo com a coordenadora da Procuradoria do Domínio Público Estadual da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Patrícia Dall'Acqua, a enchente que motivou a ação, em 2007, fez com que outras pessoas entrassem na Justiça buscando indenizações. "Hoje, 72 ações relacionadas a enchentes no arroio tramitam em Porto Alegre e na região metropolitana. Temos decisões favoráveis em alguns casos", diz.
Para o presidente da Comissão de Sustentabilidade e Meio Ambiente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Carlos Alberto Maluf Sanseverino, as decisões têm sido favoráveis aos moradores nos casos em que fotos, depoimentos e documentos provam que os efeitos das chuvas poderiam ter sido evitados. "Se os moradores conseguirem provar que a enchente não é um fato extraordinário, o Estado tem que arcar com as indenizações", diz.